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Terça-feira, Dezembro 30, 2025

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Quando a Violência Revela o Que Preferíamos Ignorar – Sousa Jamba

Há momentos em que a realidade nos atinge com uma brutalidade que não se deixa amaciar por nenhuma metáfora. A gravação que circula nas redes sociais angolanas, mostrando dois agentes da polícia a violarem uma jovem mulher enquanto filmavam o ato, é um desses momentos. Mas talvez o mais perturbador não seja apenas o horror daquilo que vemos; é a serenidade da impunidade, tão instalada, que os perpetradores sentiram a necessidade de documentar o crime como quem arquiva um troféu.

Isto não é, portanto, a história de dois homens isolados que “perderam a cabeça” num instante de desvario. É a história de um sistema que, durante décadas, lhes ensinou, pelo silêncio cúmplice, que podiam fazer aquilo sem consequências. E aqui a nossa indignação, por mais verdadeira que seja, corre o risco de se tornar apenas mais um ruído: se nos limitarmos a exigir castigos exemplares, trataremos o sintoma e deixaremos intacta a doença.

Pergunto, então: não temos nós os músicos que cantam precisamente isto, que repetem, em cada refrão, a ideia de que “se a miúda já cresceu, então podemos tê-la”? Não temos os idiotas que exibem, com orgulho de feira, os seus símbolos fálicos, reduzindo mulheres a objetos de conquista e humilhação? Não temos uma cultura popular que celebra uma masculinidade vulgar, ostensiva, torpe, e perante a qual tantas vezes rimos, ou fingimos não ouvir? A consequência está ali, nua e irrefutável: uma mulher ensanguentada, aterrorizada, diante de um homem de cérebro diminuto, capaz de a reduzir a matéria-prima do seu prazer e da sua crueldade.

Dói, porque nos tenta convencer de que “não somos nós”; mas somos. Somos quando deixamos que esses monstros sejam aplaudidos; somos quando confundimos barbárie com identidade; somos quando caímos na armadilha de chamar “cultura” ao que, na verdade, é pedagogia do predador. Que cultura é essa que ensina homens a tratar mulheres como presas?

E repare-se: a vítima, quase sempre, é pobre. Ele não faria isto a alguém da classe média, nem a alguém de posição superior, porque tudo lhe cairia em cima. Não o faria na aldeia, onde ainda funcionam as redes antigas da vigilância comunitária, os laços familiares, a honra masculina entendida como proteção e não como caça; a família dela cair-lhe-ia em cima, e a sociedade, também. Mas na selva urbana, onde essas instituições socializadoras se enfraquecem e o anonimato se torna escudo, a pobreza desprotege e o agressor ganha coragem.

Pode fazê-lo porque supõe que ela não tem quem a defenda, que ninguém virá, que o escândalo passará e a vida seguirá, como se nada fosse. Este é o preço último dessa música e desse imaginário que celebramos. Pagamo-lo com o corpo e com a dignidade das mulheres mais vulneráveis. E enquanto continuarmos a aplaudir nos concertos, a partilhar nas redes sociais, a rir das letras que transformam violação em sedução e domínio em romance, estaremos a fabricar, dia após dia, os homens que aparecem naquela gravação.

A violência não nasce connosco; aprende-se. Aprende-se quando vemos os nossos pais baterem nas nossas mães. Aprende-se quando vemos as nossas irmãs espancadas e tratadas como coisa. Aprende-se quando vemos as nossas filhas humilhadas e, em vez de as protegermos, dizemos: “volta lá, aceita, é assim mesmo”. E, porque a ignoramos, porque nos habituamos a ela como quem se habitua ao barulho da rua, ela cresce, multiplica-se, instala-se, torna-se normal.

É tempo de nós, homens, enquanto pais, irmãos e filhos, nos juntarmos e pedirmos perdão às inúmeras irmãs que ferimos, por ação, por omissão, por cobardia.

É tempo de começarmos a ver o mundo do ponto de vista das que sangram, das que são violadas, das que são humilhadas, das que são tratadas como nada. Porque, no fim, somos nós que perdemos. Somos nós que, pouco a pouco, nos tornamos menos humanos. Quando permitimos que uma mulher seja reduzida a objeto, quando aceitamos que a violência seja norma, quando celebramos uma masculinidade feita de domínio e crueldade, não estamos a construir homens fortes; estamos a levantar ruínas, incapazes de sentir, incapazes de proteger, incapazes de amar.

A jovem mulher daquelas imagens tem olhos que nos acusam. E, se queremos pedir-lhe perdão com alguma honestidade, teremos de fazer mais do que exigir a prisão dos culpados. Teremos de deixar de aplaudir os cantores que a despem em metáforas. Teremos de parar de rir das piadas que normalizam a sua humilhação. Teremos de admitir que, no espelho partido que aquela gravação nos devolve, não vemos apenas monstros isolados: vemos a monstruosidade coletiva que os produz, os alimenta e os celebra. E teremos, sobretudo, de reconhecer isto: enquanto não mudarmos o que ensinamos aos nossos filhos sobre o que significa ser homem, continuaremos a fabricar os agressores de amanhã.

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