Onde pára o Dr. João Pinto? Refiro-me àquele João Pinto que, apesar das insinuações que alguns de nós lhe atirámos no passado, hoje se dá por falta; debater com ele era um sobressalto feliz, porque o homem pensava com método e tinha a humildade rara de, vendo o fio do raciocínio ceder, reconhecer o erro e ceder também.
Dissessem o que dissessem, era um homem formado, de leitura sólida; e o que mais me agradava nele era isto: estudara lógica, conhecia-lhe as regras, distinguia premissas e conclusões, via onde a prova apertava e onde afrouxava, e nessa vigilância havia uma espécie de cortesia intelectual que tornava o confronto vivo e limpo.
Talvez por isso lhe viesse tão fácil apontar os tropeços do pensamento corrente; aqueles enganos que, feitos sem malícia, fabricam certezas frágeis. A generalização apressada, que ergue uma lei com meia dúzia de casos; a ladeira escorregadia, que imagina desfechos extremos sem mostrar os elos; o espantalho, que deforma o argumento alheio para o derrubar sem esforço; o apelo à autoridade, deslocado quando a autoridade não é competente para o assunto; a pista falsa, que desvia a conversa para longe do essencial. E ainda os erros de todos os dias: confundir correlação com causalidade; tomar a voz do número pelo selo da verdade no conforto do ad populum; preferir a anedota à evidência. E as armadilhas mais antigas, sempre novas: a petição de princípio, que faz da conclusão a própria premissa; a falácia genética, que julga uma ideia pela origem e não pelos méritos; a falsa analogia, que aproxima o que, no essencial, não é comparável. Reconhecer estes padrões, dizia ele, não era pedantaria; era higiene do juízo.
E, para que a verdade se diga, também o João Pinto contava; homem letrado à sua maneira, saído da escola da vida, sabia do que falava. Às vezes exagerava, às vezes deixava-se levar, a emoção subia-lhe depressa e enchia a sala; porém havia nele uma humildade de fundo, talvez nascida do duro que a vida em Portugal lhe trouxera. Trabalhou em obras, conheceu andaimes, cimento, o pó que não perdoa; e, no entanto, levava as ideias a sério, tratava os livros com respeito, estimava a vida do espírito. Gostava da boa discussão, procurava a contradição fecunda; suspeito que esse ímpeto vinha de um chão sólido de formação, académica ou autodidata, que lhe deu traves firmes. Sempre que me convidavam a debater com ele, a excitação crescia; havia assunto, havia risco. Estudava o tema, colegiava notas, revia fontes; e, quando respondia, não bastava replicar, era preciso desmontar a afirmação, mostrar-lhe a falta de validade, virar a peça com cuidado até expor o vício. Mesmo quando tentava contornar as regras, ensaiando artifícios para testar a paciência do contraditor, mantinha-se dentro do jogo; conhecia-o tão bem que o dobrava sem o quebrar. Era um prazer inteiro.
Ainda assim, e embora as fitas e insígnias que trazíamos ao peito viessem muitas vezes tingidas nas cores respectivas dos nossos partidos, devo dizer que todo aquele processo, todo aquele projecto, acabou por beneficiar muitos jovens; nada há de mais belo do que assistir ao choque de ideias, ao embate de visões, quando esse encontro se cumpre dentro de regras claras e respeitadas. O que, infelizmente, se vai vendo hoje, ao menos pelo que certos debates revelam, é gente a chegar com facas a um combate de boxe; há quem entre de machado na mão, e com isso morrem as regras, cessa o árbitro e cala-se a razão. Fica apenas a ânsia de esmagar o adversário pelo simples gosto de o esmagar.
João Pinto: nome que ainda ordena a sala; não pelo volume, mas pelo método; não pela pressa, mas pela exactidão. Entrava no debate como quem entra numa oficina, com a lógica ao ombro e o respeito na voz; escutava, alinhava premissas, testava conclusões; e, se via a razão ceder, admitia o desvio e recomeçava. Obriga a estudar, esse tipo de adversário; obriga a limpar a frase, a pesar o exemplo, a distinguir prova de ornamento. Faz falta, porque devolve regras ao ringue e dignidade ao choque; porque lembra que pensar é trabalho e que a vitória, sem critério, não vale o aplauso.